À CONVERSA COM... MARCANTÓNIO DEL CARLO
A CULTURA TEM QUE SER EXPERIMENTADA, VIVIDA PELA COMUNIDADE. SE NÃO FOR VIVIDA, NÃO É CULTURA.
O conhecido actor Marcantónio del Carlo foi o ideólogo, produtor e encenador do espectáculo "Quem matou Romeu e Julieta?" que, durante três semanas, teve lugar no cinetetatro Messias, na Mealhada. No programa À conversa com..., do Rádio Clube da Pampilhosa e do Jornal da Mealhada, o actor falou do projecto que desenvolveu com três escolas da região e um instituto universitário de Coimbra, e da escolha da Mealhada para encenar o resultado do projecto desenvolvido ao longo de dois anos com mais de cem alunos. O espectáculo tem hoje, às 14h 30m, a sua última representação.
Esteve na Mealhada, desde dia 24 de Abril, uma adaptação sua de "Romeu e Julieta", de Shakespeare, com a participação de cerca de cem crianças. É um projecto pouco comum.
É verdade. Não são crianças, são adolescentes. A peça é a cereja em cima do bolo, dado que isto é um projecto que tem dois anos, envolveu três escolas, Escola de Lordemão, Coimbra, Instituto Pedro Hispano, da Granja do Ulmeiro, e a Escola Pedro Teixeira, de Cantanhede, e ainda a ARCA, um instituto universitário de Coimbra. Propôs-se a toda esta comunidade escolar trabalhar um clássico teatral. Trabalhar com esta ideia: em vez de levar as pessoas ao teatro, o que quisemos fazer foi levar o teatro às pessoas, ou seja, envolver as pessoas na criação de um espectáculo.
E como foi feito esse trabalho?
Dividiu-se em três áreas: cenografia, representação e música. Cada escola foi desenvolvendo o seu trabalho. O que vemos no palco, juntamente com seis actores profissionais, são perto de cem pessoas. É um projecto ambicioso, porque é inovador em Portugal. É a primeira vez que uma comunidade tão vasta participa, juntamente com profissionais, na criação de um objecto teatral. Isto, para mim, é muito gratificante. Eu defendo, cada vez mais, a intervenção das artes na comunidade, nomeadamente da dança, do teatro e da música, ou seja, não fazermos o que normalmente se faz, que é o seguinte: constrói-se um espectáculo, realiza-se e depois ficamos à espera que as pessoas o venham ver. O que pretendemos é que a comunidade, ao longo destes dois anos em que esteve a trabalhar neste projecto, se veja claramente envolvida nele. Todos são participantes, desde o pai, que acompanhou o filho nos ensaios, até aos próprios professores que foram envolvidos e outros elementos da comunidade que acabam por estar envolvidos.
Houve forte adesão dos jovens?
A adesão foi muito positiva. É muito curioso porque eles acabaram por ser a grande mais valia deste projecto. Por exemplo, nós temos uma enorme máquina, com altura e largura signficativas, que, consoante as situações teatrais, se divide em seis cenários diferentes. Foi construído na ARCA, por alunos universitários. A própria divulgação do espectáculo, em termos de cartazes, flyers, etc., foi desenvolvida, com trabalhos diversos e de qualidade, por esses alunos. Alguns dos actores que entram na representação também são alunos. É muito satisfatório ver esta simbiose entre profissionais e não-profissionais.
Este projecto já nasce com o objectivo de fazer um espectáculo, ou não?
Não, não. O objectivo era que, durante dois anos, se abordasse pedagogicamente um clássico. Surgiu então a hipótese deste final um espectáculo profissional, numa casa de espectáculos dotada das condições necessárias, como é o caso do cineteatro Messias, da Mealhada.
Mas representado de modo diferente...
O nosso espectáculo não é o clássico "Romeu e Julieta". Por exemplo, o nosso baile de Romeu e Julieta é uma rave. As lutas são como se fossem jogos de computador. É uma linguagem aproximada daquilo que acontece com frequência hoje em dia.
A história, todavia, é a de Shakespeare...
A história é, efectivamente, a mesma. E continua a ser uma história bastante pertinente. Porque os dramas sociais estão patentes nma sociedade actual. Basta ler as notícias. Continua haver, nos ghettos, os Capuletos e os Montéquios. Baste ver as tragédias que se verificam todos os domingos, no futebol, entre benfiquistas, sportinguistas e portistas, por exemplo, que rivalizam por causa de uma cor. Nesta nossa Verona, acontece a mesma coisa: há duas cores, há duas famílias que lutam, estupidamente, por uma cor. No meio há dois seres, que são o Romeu e Julieta, que acham tudo isto uma parvoíce e que se apaixonam. A história é, exactamente, a mesma. Nós contamo-la de uma forma pedagógica. Há um guião. Há um guião dentro da peça, que é o meu, ou seja, sistematicamente, paramos a peça para explicar o que está acontecer. Explicar de uma forma divertida. Há muito humor no espectáculo, provocado pela própria peça.
Como é que Marcantónio del Carlo entrou nestas escolas?
Eu vim, há cerca de três anos, ministrar um curso de teatro nesta zona do País. Nesse curso ficou demonstrada, da minha parte e da parte dos formandos, uma vontade de fazer um projecto em comum.
E os formandos eram destas escolas?
Dos alunos que tive no tal curso que dei, alguns eram professores e também havia alunos, claro, que vinham destas três escolas. Portanto, consequentemente, foram as escolas que se associaram ao projecto. Mas isto aconteceu por acaso.
E como se desenvolveu este projecto dentro das escolas?
Dentro das escolas foi tudo muito simples. Eu pensei que ia ser mais complicado. Todos os alunos que quiseram, inscreveram-se em uma das três áreas: cenografia, música e representação. Fizemos depois uma pré-selecção, muito em função não só da qualidade dos alunos mas também da sua disponibilidade.
Da disponibilidade dos alunos?
Foi muito complicado em termos logísticos ter estes cem alunos, uma vez por semana, a trabalharem, exclusivamente, nisto. As três escolas tiveram, que reformular as suas actividades curriculares.
E como foi trabalhar com tanta gente e gente tão jovem?
Foi muito engraçado! É um sugestão que devia ser aproveitada, a nível nacional. Eu já tinha desenvolvido um projecto semelhante com António Fonseca, um dos actores que entra neste espectáculo. Uma produção mais ou menos como esta, noutro contexto, com outra peça. Mas aí eu descobri uma coisa muito interessante: para muita gente o teatro, como a arte em geral, é tabu, é chato e cinzento. Curiosamente, há cada vez mais gente que quer experimentar teatro. Neste projecto de agora, não podíamos ter mais de cem pessoas em palco e tivemos muito mais do que cem inscrições.
Neste caso colocou muita gente a experimentar teatro.
Acho que aconteceu aquilo que pretendia. Neste momento, as três escolas, mais toda a comunidade residente não só por este espectáculo específico, mas também pelo teatro em geral. Porque, durante dois anos, todos, directa ou indirectamente, estiveram a trabalhar para ele. Não vale a pena irmos para as escolas e dizer: "Bom, vamos ler livros, vamos fazer música e fazer teatro, porque é bom e é cultura". Isto é mentira. Porque a cultura tem que ser experimentada, vivida pela comunidade. Se não for vivida, não se pode chamar cultura.
Para viver a cultura será preciso, também, passar por estas casas de espectáculo?
Eu acho que o teatro-escola pode ser feito em casa, pelos próprios pais. Acho que o teatro não se cinge a um casa de espectáculos. Por exemplo, nós só tivemos uma semana de adaptação ao palco. Em dois anos, trabalhámos nas escolas, numa sala de aula. Os próprios actores profissionais estiveram dois meses a desenvolver a peça, na ARCA. A propósito disso aconteceu uma coisa muita curiosa. A partir do momento que nós tivemos o cenário pronto, que é muito grande, nós tínhamos ensaios lá, durante as aulas, e a comunidade escolar da ARCA via os ensaios e havia um respeito enorme. Nós não tínhamos que dizer: "Por favor, não façam barulho que estamos a ensaiar". Eles já o sabiam porque a máquina foi lá construída. Isto é muito mais divertido assim, quando se envolve uma comunidade, e é também mais eficaz.
Quem foi ao cinetetaro Messias ver "Quem matou Romeu e Julieta" teve oportunidade de ver também uma exposição sobre o projecto.
Uma exposição enorme, interactiva, em que os espectadores, antes de entrarem para a sala, puderam perceber todo o processo que foi criado. Viram maquetas, cenários, hipóteses de cartazes. Isto é muito interessante, eficaz, e faz com que a comunidade esteja connosco. Ou seja, de repente, os actores não são aquelas pessoas estranhas, como eu, que aparecem nas televisões. São pessoas como outras quaisquer, só que fazem qualquer coisa de mágico. A exposição é como se fosse o Luís de Matos a explixar os truques, ou seja, como é que tira o coelho da cartola.
O projecto envolveu escolas de Lordemão, Cantanhede, Granja do Ulmeiro. Como é que veio parar à Mealhada?
Nós viemos parar à Mealhada porque, quando se fez a proposta do projecto, era preciso encontrar um palco que tivesse dimensão para instalarmos o cenário, que é enorme. Houve depois a necessidade de termos uma casa de espectáculos que fosse nobre e que, de alguma maneira, fosse central para as várias comunidades. Um sítio acessível, por um lado, e que, por outro lado, tivesse interesse.
Um local que dignificasse a própria peça?
Não só que dignificasse mas onde as pessoas se vissem reconhecidas naquele teatro. Passámos por várias propostas, uma delas foi o Gil Vicente, em Coimbra. Finalmente, surgiu a hipótese desta sala. Houve uma abertura fantástica da parte da Câmara Municipal da Mealhada, que se interessou muito pelo projecto. Tanto a drª Benvinda Rolo como o presidente da Câmara logo que leram o projecto disseram: "Isto interessa-nos". Uma das coisas que eles acharam interessante, pelo que me deram a conhecer, foi a intervenção da comunidade. Ou seja, perceberam, tal como as três escolas já tinham percebido há dois anos, que, depois do espectáculo acabar, ficará uma semente. Isto pode ser um embrião para outras coisas que nós queiramos fazer.
O cineteatro Messias adaptou-se facilmente ao que pretendia?
Há pouco estava a falar com um dos funcionários aqui do cineteatro e lembrei-me de que os problemas que nos foram surgindo seriam muito dificeis de contornar, mesmo num teatro mais institucionalizado. Aqui tudo é fácil, porque há um à-vontade muito grande e se, de repente, houver um problema técnico, resolve-se. Alguém tem o tal cabo que falta ou vai-se a casa de uma pessoa buscá-lo. Se calhar, numa outra zona, eram precisos cinco ofícios assinados por cinco pessoas diferentes. A crise do teatro reside no facto de estar na mão de pessoas que não têm nada a ver com arte. Temos demasiada burocracia e pouca arte! Por exemplo, a grande maioria dos teatros oficiais, institucionalizados, estão na mão de pessoas que não percebem nada de teatro e que não têm nada a ver com teatro. Aqui na Mealhada não. A equipa que está aqui, é do teatro, sabe o que é que está a fazer, tem objectivos.
Vai representar esta peça noutros palcos?
Seria interessante fazer um merchandising deste projecto, porque o cenário está montado, os seis actores profissionais são os mesmos, e era interessante ir representar a outros sítios. O interessante seria, durante seis meses, ir ao Porto, a Lisboa, ou ao Alentejo, com estes actores, com o cenário pronto, desenvolver todo o trabalho de base que foi feito, mas com outras escolas.
Será possivel uma tournée?
Temos quarenta percussionistas, seis músicos, dezanove actores, tudo de escolas, para além dos seis actores profissionais. É muito difícil levar esta gente toda em tournée. Seria muito interessante existirem outros sítios, que dissessem que estavam interessados numa espécie de merchandising da peça.
E afinal quem é que matou Romeu e Julieta?
Isso é o que é curioso nesta peça e foi o ponto de partida do meu texto. Quem é que matou Romeu e Julieta? Os próprios espectadores não vão estar passivos, têm uma interacção com os actores, com aquilo que está acontecer em palco, e a proposta é, exactamente, responderem à pergunta: Quem matou o sonho? É uma das frases que escrevi no programa.
O sonho ou Romeu e Julieta?
Nós tivemos um sonho de nos lançarmos neste projecto e tivemos a sorte de o viver, de o "curtir". Por que é que não existem mais sonhos destes no País? Há aqui tanta gente nova, que tem qualidades fabulosas! Vou dar um exemplo: Na minha ideia inicial julguei que iria ter de recorrer a muita música gravada. Não sabia o que os músicos seriam capazes de tocar. No primeiro ensaio, fui ver os músicos, só lhes tinha dado três ou quatro ideias, e vi logo que não iria precisar de meter música gravada nenhuma porque eles eram mesmo muito bons. Apresentámos um espectáculo com músicas originais. A canção "Romeu e Julieta", por exemplo, é da autoria de um aluno que tem catorze anos. E toda a música é tocada ao vivo.
Romeu e Julieta suicidam-se. Aliás, como na peça original. A pergunta que dá título ao espectáculo procura os culpados?
"Aquilo que vocês viram, este drama, acontece porquê?". Esta é a pergunta que nós fazemos perante este drama juvenil, sem grandes pretensões, porque o público é que é o grande juiz de um espectáculo. Isto é muito actual e oportuno. A peça termina, exactamente, com esta pergunta. Acaba com o príncipe de Verona a perguntar aos espectadores: "De vós (Capuletos e Montéquios) quem é que matou?". E a pergunta é dirigida também a nós, com os nossos ódios racistas, do futebol, disto e daquilo, aos ghettos, com armas à solta, com miudagem que anda à pancada por tudo e por nada. Portanto, a peça tem muito de actual. Daí a escolha deste clássico e não de outra peça de William Shakespeare.
A CULTURA TEM QUE SER EXPERIMENTADA, VIVIDA PELA COMUNIDADE. SE NÃO FOR VIVIDA, NÃO É CULTURA.
O conhecido actor Marcantónio del Carlo foi o ideólogo, produtor e encenador do espectáculo "Quem matou Romeu e Julieta?" que, durante três semanas, teve lugar no cinetetatro Messias, na Mealhada. No programa À conversa com..., do Rádio Clube da Pampilhosa e do Jornal da Mealhada, o actor falou do projecto que desenvolveu com três escolas da região e um instituto universitário de Coimbra, e da escolha da Mealhada para encenar o resultado do projecto desenvolvido ao longo de dois anos com mais de cem alunos. O espectáculo tem hoje, às 14h 30m, a sua última representação.
Esteve na Mealhada, desde dia 24 de Abril, uma adaptação sua de "Romeu e Julieta", de Shakespeare, com a participação de cerca de cem crianças. É um projecto pouco comum.
É verdade. Não são crianças, são adolescentes. A peça é a cereja em cima do bolo, dado que isto é um projecto que tem dois anos, envolveu três escolas, Escola de Lordemão, Coimbra, Instituto Pedro Hispano, da Granja do Ulmeiro, e a Escola Pedro Teixeira, de Cantanhede, e ainda a ARCA, um instituto universitário de Coimbra. Propôs-se a toda esta comunidade escolar trabalhar um clássico teatral. Trabalhar com esta ideia: em vez de levar as pessoas ao teatro, o que quisemos fazer foi levar o teatro às pessoas, ou seja, envolver as pessoas na criação de um espectáculo.
E como foi feito esse trabalho?
Dividiu-se em três áreas: cenografia, representação e música. Cada escola foi desenvolvendo o seu trabalho. O que vemos no palco, juntamente com seis actores profissionais, são perto de cem pessoas. É um projecto ambicioso, porque é inovador em Portugal. É a primeira vez que uma comunidade tão vasta participa, juntamente com profissionais, na criação de um objecto teatral. Isto, para mim, é muito gratificante. Eu defendo, cada vez mais, a intervenção das artes na comunidade, nomeadamente da dança, do teatro e da música, ou seja, não fazermos o que normalmente se faz, que é o seguinte: constrói-se um espectáculo, realiza-se e depois ficamos à espera que as pessoas o venham ver. O que pretendemos é que a comunidade, ao longo destes dois anos em que esteve a trabalhar neste projecto, se veja claramente envolvida nele. Todos são participantes, desde o pai, que acompanhou o filho nos ensaios, até aos próprios professores que foram envolvidos e outros elementos da comunidade que acabam por estar envolvidos.
Houve forte adesão dos jovens?
A adesão foi muito positiva. É muito curioso porque eles acabaram por ser a grande mais valia deste projecto. Por exemplo, nós temos uma enorme máquina, com altura e largura signficativas, que, consoante as situações teatrais, se divide em seis cenários diferentes. Foi construído na ARCA, por alunos universitários. A própria divulgação do espectáculo, em termos de cartazes, flyers, etc., foi desenvolvida, com trabalhos diversos e de qualidade, por esses alunos. Alguns dos actores que entram na representação também são alunos. É muito satisfatório ver esta simbiose entre profissionais e não-profissionais.
Este projecto já nasce com o objectivo de fazer um espectáculo, ou não?
Não, não. O objectivo era que, durante dois anos, se abordasse pedagogicamente um clássico. Surgiu então a hipótese deste final um espectáculo profissional, numa casa de espectáculos dotada das condições necessárias, como é o caso do cineteatro Messias, da Mealhada.
Mas representado de modo diferente...
O nosso espectáculo não é o clássico "Romeu e Julieta". Por exemplo, o nosso baile de Romeu e Julieta é uma rave. As lutas são como se fossem jogos de computador. É uma linguagem aproximada daquilo que acontece com frequência hoje em dia.
A história, todavia, é a de Shakespeare...
A história é, efectivamente, a mesma. E continua a ser uma história bastante pertinente. Porque os dramas sociais estão patentes nma sociedade actual. Basta ler as notícias. Continua haver, nos ghettos, os Capuletos e os Montéquios. Baste ver as tragédias que se verificam todos os domingos, no futebol, entre benfiquistas, sportinguistas e portistas, por exemplo, que rivalizam por causa de uma cor. Nesta nossa Verona, acontece a mesma coisa: há duas cores, há duas famílias que lutam, estupidamente, por uma cor. No meio há dois seres, que são o Romeu e Julieta, que acham tudo isto uma parvoíce e que se apaixonam. A história é, exactamente, a mesma. Nós contamo-la de uma forma pedagógica. Há um guião. Há um guião dentro da peça, que é o meu, ou seja, sistematicamente, paramos a peça para explicar o que está acontecer. Explicar de uma forma divertida. Há muito humor no espectáculo, provocado pela própria peça.
Como é que Marcantónio del Carlo entrou nestas escolas?
Eu vim, há cerca de três anos, ministrar um curso de teatro nesta zona do País. Nesse curso ficou demonstrada, da minha parte e da parte dos formandos, uma vontade de fazer um projecto em comum.
E os formandos eram destas escolas?
Dos alunos que tive no tal curso que dei, alguns eram professores e também havia alunos, claro, que vinham destas três escolas. Portanto, consequentemente, foram as escolas que se associaram ao projecto. Mas isto aconteceu por acaso.
E como se desenvolveu este projecto dentro das escolas?
Dentro das escolas foi tudo muito simples. Eu pensei que ia ser mais complicado. Todos os alunos que quiseram, inscreveram-se em uma das três áreas: cenografia, música e representação. Fizemos depois uma pré-selecção, muito em função não só da qualidade dos alunos mas também da sua disponibilidade.
Da disponibilidade dos alunos?
Foi muito complicado em termos logísticos ter estes cem alunos, uma vez por semana, a trabalharem, exclusivamente, nisto. As três escolas tiveram, que reformular as suas actividades curriculares.
E como foi trabalhar com tanta gente e gente tão jovem?
Foi muito engraçado! É um sugestão que devia ser aproveitada, a nível nacional. Eu já tinha desenvolvido um projecto semelhante com António Fonseca, um dos actores que entra neste espectáculo. Uma produção mais ou menos como esta, noutro contexto, com outra peça. Mas aí eu descobri uma coisa muito interessante: para muita gente o teatro, como a arte em geral, é tabu, é chato e cinzento. Curiosamente, há cada vez mais gente que quer experimentar teatro. Neste projecto de agora, não podíamos ter mais de cem pessoas em palco e tivemos muito mais do que cem inscrições.
Neste caso colocou muita gente a experimentar teatro.
Acho que aconteceu aquilo que pretendia. Neste momento, as três escolas, mais toda a comunidade residente não só por este espectáculo específico, mas também pelo teatro em geral. Porque, durante dois anos, todos, directa ou indirectamente, estiveram a trabalhar para ele. Não vale a pena irmos para as escolas e dizer: "Bom, vamos ler livros, vamos fazer música e fazer teatro, porque é bom e é cultura". Isto é mentira. Porque a cultura tem que ser experimentada, vivida pela comunidade. Se não for vivida, não se pode chamar cultura.
Para viver a cultura será preciso, também, passar por estas casas de espectáculo?
Eu acho que o teatro-escola pode ser feito em casa, pelos próprios pais. Acho que o teatro não se cinge a um casa de espectáculos. Por exemplo, nós só tivemos uma semana de adaptação ao palco. Em dois anos, trabalhámos nas escolas, numa sala de aula. Os próprios actores profissionais estiveram dois meses a desenvolver a peça, na ARCA. A propósito disso aconteceu uma coisa muita curiosa. A partir do momento que nós tivemos o cenário pronto, que é muito grande, nós tínhamos ensaios lá, durante as aulas, e a comunidade escolar da ARCA via os ensaios e havia um respeito enorme. Nós não tínhamos que dizer: "Por favor, não façam barulho que estamos a ensaiar". Eles já o sabiam porque a máquina foi lá construída. Isto é muito mais divertido assim, quando se envolve uma comunidade, e é também mais eficaz.
Quem foi ao cinetetaro Messias ver "Quem matou Romeu e Julieta" teve oportunidade de ver também uma exposição sobre o projecto.
Uma exposição enorme, interactiva, em que os espectadores, antes de entrarem para a sala, puderam perceber todo o processo que foi criado. Viram maquetas, cenários, hipóteses de cartazes. Isto é muito interessante, eficaz, e faz com que a comunidade esteja connosco. Ou seja, de repente, os actores não são aquelas pessoas estranhas, como eu, que aparecem nas televisões. São pessoas como outras quaisquer, só que fazem qualquer coisa de mágico. A exposição é como se fosse o Luís de Matos a explixar os truques, ou seja, como é que tira o coelho da cartola.
O projecto envolveu escolas de Lordemão, Cantanhede, Granja do Ulmeiro. Como é que veio parar à Mealhada?
Nós viemos parar à Mealhada porque, quando se fez a proposta do projecto, era preciso encontrar um palco que tivesse dimensão para instalarmos o cenário, que é enorme. Houve depois a necessidade de termos uma casa de espectáculos que fosse nobre e que, de alguma maneira, fosse central para as várias comunidades. Um sítio acessível, por um lado, e que, por outro lado, tivesse interesse.
Um local que dignificasse a própria peça?
Não só que dignificasse mas onde as pessoas se vissem reconhecidas naquele teatro. Passámos por várias propostas, uma delas foi o Gil Vicente, em Coimbra. Finalmente, surgiu a hipótese desta sala. Houve uma abertura fantástica da parte da Câmara Municipal da Mealhada, que se interessou muito pelo projecto. Tanto a drª Benvinda Rolo como o presidente da Câmara logo que leram o projecto disseram: "Isto interessa-nos". Uma das coisas que eles acharam interessante, pelo que me deram a conhecer, foi a intervenção da comunidade. Ou seja, perceberam, tal como as três escolas já tinham percebido há dois anos, que, depois do espectáculo acabar, ficará uma semente. Isto pode ser um embrião para outras coisas que nós queiramos fazer.
O cineteatro Messias adaptou-se facilmente ao que pretendia?
Há pouco estava a falar com um dos funcionários aqui do cineteatro e lembrei-me de que os problemas que nos foram surgindo seriam muito dificeis de contornar, mesmo num teatro mais institucionalizado. Aqui tudo é fácil, porque há um à-vontade muito grande e se, de repente, houver um problema técnico, resolve-se. Alguém tem o tal cabo que falta ou vai-se a casa de uma pessoa buscá-lo. Se calhar, numa outra zona, eram precisos cinco ofícios assinados por cinco pessoas diferentes. A crise do teatro reside no facto de estar na mão de pessoas que não têm nada a ver com arte. Temos demasiada burocracia e pouca arte! Por exemplo, a grande maioria dos teatros oficiais, institucionalizados, estão na mão de pessoas que não percebem nada de teatro e que não têm nada a ver com teatro. Aqui na Mealhada não. A equipa que está aqui, é do teatro, sabe o que é que está a fazer, tem objectivos.
Vai representar esta peça noutros palcos?
Seria interessante fazer um merchandising deste projecto, porque o cenário está montado, os seis actores profissionais são os mesmos, e era interessante ir representar a outros sítios. O interessante seria, durante seis meses, ir ao Porto, a Lisboa, ou ao Alentejo, com estes actores, com o cenário pronto, desenvolver todo o trabalho de base que foi feito, mas com outras escolas.
Será possivel uma tournée?
Temos quarenta percussionistas, seis músicos, dezanove actores, tudo de escolas, para além dos seis actores profissionais. É muito difícil levar esta gente toda em tournée. Seria muito interessante existirem outros sítios, que dissessem que estavam interessados numa espécie de merchandising da peça.
E afinal quem é que matou Romeu e Julieta?
Isso é o que é curioso nesta peça e foi o ponto de partida do meu texto. Quem é que matou Romeu e Julieta? Os próprios espectadores não vão estar passivos, têm uma interacção com os actores, com aquilo que está acontecer em palco, e a proposta é, exactamente, responderem à pergunta: Quem matou o sonho? É uma das frases que escrevi no programa.
O sonho ou Romeu e Julieta?
Nós tivemos um sonho de nos lançarmos neste projecto e tivemos a sorte de o viver, de o "curtir". Por que é que não existem mais sonhos destes no País? Há aqui tanta gente nova, que tem qualidades fabulosas! Vou dar um exemplo: Na minha ideia inicial julguei que iria ter de recorrer a muita música gravada. Não sabia o que os músicos seriam capazes de tocar. No primeiro ensaio, fui ver os músicos, só lhes tinha dado três ou quatro ideias, e vi logo que não iria precisar de meter música gravada nenhuma porque eles eram mesmo muito bons. Apresentámos um espectáculo com músicas originais. A canção "Romeu e Julieta", por exemplo, é da autoria de um aluno que tem catorze anos. E toda a música é tocada ao vivo.
Romeu e Julieta suicidam-se. Aliás, como na peça original. A pergunta que dá título ao espectáculo procura os culpados?
"Aquilo que vocês viram, este drama, acontece porquê?". Esta é a pergunta que nós fazemos perante este drama juvenil, sem grandes pretensões, porque o público é que é o grande juiz de um espectáculo. Isto é muito actual e oportuno. A peça termina, exactamente, com esta pergunta. Acaba com o príncipe de Verona a perguntar aos espectadores: "De vós (Capuletos e Montéquios) quem é que matou?". E a pergunta é dirigida também a nós, com os nossos ódios racistas, do futebol, disto e daquilo, aos ghettos, com armas à solta, com miudagem que anda à pancada por tudo e por nada. Portanto, a peça tem muito de actual. Daí a escolha deste clássico e não de outra peça de William Shakespeare.
Espera quatrocentas respostas diferentes (a lotação do cineteatro Messias) em cada espectáculo?
Eu espero que haja mais. Não é só esperar que venha muito público, que espero obviamente. Espero que esta peça levante questões. Porque a peça tem a duração de uma hora e meia e é muito divertida, tem muito humor, tem dança, tem coreografias, tem lutas, tem imensas coisas. Tem todos os ingredientes para um bom espectáculo, para divertir as pessoas. Mas a peça também quer, de alguma maneira, apontar o dedo às pessoas: "O que é que você pensa disto? E o que é que em casa faz com isto?".
É uma peça que não tranquiliza?
É uma peça que inquieta! Por que é que aqueles dois jovens se matam? E, ainda por cima, por causa de um equívoco? Esse equívoco é causado, muito claramente, pela cidade de Verona, pela comunidade.
Ao fazer esta peça fora de Lisboa ou do Porto, ao vir fazer algo inédito aqui, está a dar alguma pedrada no charco?
Eu sou um criador, não me preocupo com essas questões. Acredito, não sou ingénuo, e sei que o teatro tem sempre um cariz político e de intervenção. Agora não me preocupo com isso. Sei que qualquer peça que eu monte ou que represente como actor vai, inevitavelmente, intervir nas pessoas que a estão a ver. Não é essa a minha preocupação e não deve ser a preocuapação de um criador. Acho que nos centros fora do Porto e de Lisboa é mais difícil fazer espectáculos. Mas a prova de que não é impossivel é que nós o fizemos aqui e não o estamos a fazer em Lisboa. Se calhar a metrópole foi, até este momento, a Mealhada. Se calhar em Lisboa, um projecto com esta dimensão não teria sido tão fácil de organizar.
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